segunda-feira, 4 de março de 2013

Franciscanos e Dominicanos: os mendigos que renovaram a Igreja no séc. XII (parte I)


Franciscanos e Dominicanos: os mendigos que renovaram a Igreja no séc. XII (parte I)

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Detalhe dos pés de um frade franciscano, no Centro de São Paulo. Foto: NILTON FUKUDAAE
E aí meu povo,
Esse capítulo especial da história dos Papas serve para contextualizar esse tempo culturalmente tão rico que foi o século XII, caracterizado pelo florescimento das heresias. Tudo converte para o momento crucial dessa era: o surgimento das Ordens Mendicantes (franciscanos e dominicanos). O conceito principal que tratamos aqui é a formação da identidade própria de cada Ordem.
Foi Inocêncio III o papa responsável pelo lançamento da primeira Cruzada dentro de território europeu; seu alvo não era o infiel islâmico ou qualquer outro inimigo não cristão: a luta era contra um grupo de hereges que se diziam “cristãos” e que se autoproclamavam os seguidores mais “puros” do cristianismo. Eram os cátaros ou albigenses (nome derivado da cidade francesa identificada pela historiografia tradicional como primeiro centro de suas atividade – Albi).
A heresia cátara foi a grande responsável pelo surgimento dos mendicantes, que se apresentaram como uma forma de reação da Igreja, indicativa dos novos rumos que tomará a espiritualidade no Ocidente.
Quem eram os cátaros?
Os cátaros surgiram a partir da penetração na Europa Ocidental, através da rota Reno-Danúbio, das ideias e pensamentos dos bogomilos, hereges da Europa Oriental que floresceram no Império Búlgaro a partir do século X e prolongaram-se até o século XIV – em longevidade sobrepujando em muito aos cátaros.  Os bogomilos erammaniqueístas, ou seja, tinham suas bases teológico-filosóficas oriundas do século III, do pensamento do pseudo-sábio persa Mani, para quem o mundo não é realização de um Criador, mas sim de dois – um bom e outro mau (mais detalhes futuramente na série de posts Heresias, aqui nO Catequista).
Os termos albigenses, cátaros e bogomilos são correlatos, equivalendo-se até certo ponto, mas não devemos esquecer que cada um deles apresenta peculiaridades. Confira:
  • Albigenses - termo que deriva da cidade de Albi, um dos principais núcleos da heresia na região do Midi francês, ou melhor, do condado de Tolosa. Albi é identificada pela historiografia tradicional como primeiro centro das atividades destes hereges. O termo “albigenses”, prevaleceu sobre as demais porque foi utilizado por todos os cronistas do século XIII que discorreram sobre a “Cruzada”.
  • Cátaros - o termo advém do grego e quer dizer “puros”, um dos epítetos atribuídos aos líderes dessas comunidades religiosas.
  • Bogomilos - em eslavo quer dizer “Amigo de Deus”. O termo está associado à figura lendária de Bogomil, um heresiarca que teria vivido no século X, ou na Bulgária, ou nos confins da Macedônia e da Trácia.
Como bons “descendentes” dos maniqueístas, os cátaros se caracterizavam especialmente por dualismo gnóstico, no qual o “Deus bom” criou a realidade espiritual, que foi aprisionada na matéria criada pelo “Deus mau”, criador do mundo físico.
Por que a pregação catára era tão atraente?
No século XII, a heresia cátara surgiu no horizonte como uma novidade desafiadora para a Igreja, em especial pela sua nova forma de pregação evangélica.
A Europa Ocidental passava por um processo de revitalização na virada do século XII para o XIII, que a tornou mais “moderna e dinâmica”. Havia uma paz relativa obtida a partir do século XII, passando por um renascimento também de caráter econômico. Assim, o retorno a uma vida mais urbana acabou por despertar um desejo pela experiência religiosa mais profunda e, consequentemente, fomentou o debate intelectual. Este foi o terreno fértil para o desenvolvimento de novas formas de ver a religiosidade que iam além dos postulados ortodoxos do catolicismo, que até aquele momento haviam tão bem cumprido seu papel de propagar o cristianismo. O homem medieval passou a buscar uma proximidade maior com seu Criador.
É aí que reside o apelo cátaro. Assim como bogomilos e dualistas gnósticos de outras vertentes, os cátaros enfatizavam a importância do contato direto com o divino. Muito embora pese o fato de o catarismo não ser estruturado como o catolicismo – havendo segundo as fontes, várias dissidências internas em que surge inclusive um papa cátaro –, de uma forma geral, os cátaros efetivamente excluíam a necessidade de um sacerdócio ou hierarquia institucional (olha os tataravôs do pessoal da Teologia da Libertação, aí, gente!).
Os cátaros tinham ainda um trunfo importantíssimo: eles usavam uma forma itinerante de pregação. Os “puros” viajavam sempre a pé pelos campos e, em suas andanças, geravam novos convertidos. Esta é, evidentemente, uma característica inversa da vida monástica à qual muitos religiosos católicos se dedicavam, pois viviam enclausurados e fixos em suas paróquias e mosteiros.
Não é difícil entender porque o povo se identificava tanto com os pregadores cátaros: enquanto os hereges se faziam próximos a eles e partilhavam de sua vida humilde, os altos escalões eclesiásticos da Igreja pouco interagiam como a população campesina e viajavam cheios de guardas, com a maior pompa.
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#SeEuAcreditasseEmReencarnação, juraria que certos pregadores de hoje são hereges albigenses reencarnados!
Para pregar sua heresia de uma forma que consideravam verdadeiramente apostólica, os cátaros dedicavam-se ao estudo das Escrituras (sabe aqueles crentes que se gabam de saber citar todos versículos da Bibra de cor? Então, eles eram mais ou menos assim). E, buscando promover de forma mais eficiente a difusão destes textos, realizaram a sua tradução do latim para a língua vernácula.
Os albigenses observavam com rigor um padrão de conduta, tendo como base a simplicidade do modo de vida e integridade. Os valores expressos em alguns textos do Novo Testamento e nos livros sapienciais do Antigo Testamento eram a base da teologia cátara. Os demais textos da Bíblia, que não pareciam dar suporte à sua teologia, eram simplesmente ignorados.
Eles negavam todos os Sacramentos da Igreja Católica, inclusive o matrimônio. As uniões entre homens e mulheres eram “toleradas”, mas não eram realizadas por meio de nenhum Sacramento; afinal, como o sexo era visto como algo intrinsecamente mau, não havia sentido em conferir tal dignidade à união dos esposos. O mundo material e a carne, para eles, eram totalmente malignos, pois foram criados pela divindade má (não é muito parecido com as pregações do pessoal da Bíblia com zíper?).
Advém dessa visão a rigorosa austeridade dos cátaros, que, em tese, seria a busca de uma imitação da vida de Cristo e de seus apóstolos, vistos como seres mais espirituais do que humanos (mais de mil anos passaram-se e a bobagem maniqueísta, já reduzida a nada por Santo Agostinho, continuava seduzindo as mentes).
Nesse contexto, havia uma real possibilidade do catarismo deslocar o catolicismo como a religião predominante no Sul da França e, dali para espalhar-se pelo continente, poderia ser algo alcançado com extrema facilidade. Por isso, as Ordens Mendicantes, principalmente os dominicanos, tiveram na sua origem uma grande atuação nessa área. Um exemplo da abrangência e alcance que os cátaros passaram a ter a partir de meados do século XII é a existência de igrejas cátaras na Itália e a fixação de comunidades cátaras nos Países Baixos.
A reação da Igreja: o nascimento das ordens mendicantes
Desde sua ascensão como principal religião do Ocidente, o cristianismo sempre se colocou na linha de frente do combate às heresias, para construir sua identidade ante as diferenças em um mundo em transformação. Ao longo de toda a sua história, uma luta sem tréguas custou inúmeras vidas. A priori, seria possível retomar até os primórdios da Igreja para elencar um sem número diferentes medidas que padres, bispos e prelados utilizaram para combater as heresias, em diferentes épocas. Mas,para dar fim às heresias, a Igreja obteve êxito não tanto por meio da força (o que muitas vezes se justificava), mas principalmente pela utilização de padrões e métodos “copiados” de seus próprios inimigos.
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O encontro de São Francisco de Assis com São Domingos, em Roma. Destalhe de afresco do Santuario de N. Sra. do Loreto, Sevilla
Em outras palavras: era preciso dar aos hereges uma dose de seu próprio remédio, utilizando-se dos métodos destes para reacender a chama do cristianismo institucionalizado, representante de Cristo na Terra – a Santa Igreja Católica.
Daí a imensa importância do surgimento e crescimento das Ordens Mendicantes: os religiosos filhos de São Francisco de Assis e de São Domingos, assim como os cátaros, se faziam próximos do povo e abraçavam uma vida de pobreza radical. No entanto, muito diferente dos hereges, promoviam a difusão do verdadeiro Evangelho, sempre em comunhão com o Papa.
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A seguir: a Cruzada Albigense (ou Cruzada Contra os Cátaros). O Bicho vai pegar.

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