segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Irresponsabilidades que matam — inclusive as do Poder Público

8/01/2013
 às 15:18

Irresponsabilidades que matam — inclusive as do Poder Público

Elissandro Sohr, um dos donos da Kiss, estava na boate quando o incêndio começou (ver post anterior). Consta que sua mulher, grávida, também. É evidente que ele não atuou de forma deliberada para matar 231 pessoas ou botar em risco a própria vida, a da mulher e a do filho. Um dos integrantes da “Gurizada Fandangueira” morreu. A turma não acende fogos de artifício do palco para provocar incêndios. E isso tudo tem de ser levado em conta.
Mas 231 pessoas morreram — e a tragédia não pode ser vista como mero incidente de percurso. O alvará e o laudo dos bombeiros estavam vencidos. Mesmo assim a casa estava funcionando normalmente. Já chamei a atenção para um aspecto: antes de agosto do ano passado, a casa tinha um “ok” do Corpo de Bombeiros, sinal de que não se via nada de errado num caixote que abriga até duas mil pessoas com uma única porta para entrada e saída — e, ainda assim, obstruída por uma parede.
Mesmo em prédios com baixo potencial inflamável — não era o caso da Kiss —, tal configuração seria um absurdo porque o incêndio não é a única ocorrência que põe as pessoas em risco. Uma briga, por exemplo, pode detonar uma reação da massa que resulte em pisoteio e mortes se não houver rotas de fuga — como não havia na Kiss, que não contava, tudo indica, com luzes de emergência.
Uma casa desse tamanho tem de ter uma brigada civil de incêndio, e uma responsável pela segurança tem de saber que tipo de show se vai fazer no palco. Num ambiente fechado, com uma única porta, revestido de papelão e material sintético para abafar o som, é razoável que se acendam fogos de artifício? A TRAGÉDIA DE SANTA MARIA FOI FABRICADA PELO DESRESPEITO À LEGISLAÇÃO, PELA ESTUPIDEZ E, SIM, PELA INCÚRIA DO PODER PÚBLICO.
E por que o poder público tem de ser acionado? Porque, reitero, era de domínio também público que a Kiss, a mais afamada casa do gênero da cidade, funcionava nessas condições. Lamento, mas os que permitiram que isso acontecesse, antes ou depois de vencida a licença dos bombeiros, optaram pelo risco.
Sim, é preciso apurar as responsabilidades, com as devidas punições legais, sempre considerando as circunstâncias, tanto as agravantes como as atenuantes. E essas circunstâncias, reitero, cobram que o poder público arque com parte da culpa. É preciso que muitos contribuam com o erro e com a incúria para que tragédias assim aconteçam. Infelizmente, no país, existe a cultura da fatalidade: “Ah, aconteceu!”.
Querem um exemplo? Quem responde pelas centenas, passando de milhar, de mortos dos soterramentos da região serrana do Rio? O que matou aquela gente? O excesso de chuvas? Ah, mas não foi mesmo! Passados a comoção e o desfile de autoridades com colete de salvamento, o que se fez efetivamente para que chuvas idênticas não causem as mesmas tragédias? A resposta triste: nada!
Quantas são as casas de show, templos religiosos, lojas — ambientes, enfim, frequentados por muita gente — que funcionam hoje mais ou menos nas mesmas condições em que operava a Kiss? O estado existe, entre outras razões, para realizar o que cada indivíduo, por sua conta, não pode operar. Nenhum de nós tinha poder para chegar à Kiss e decidir: “Uma única porta de entrada e saída para duas mil pessoas? Sem luz de emergência? Sem um plano de rota de fuga? Isso tem de ser fechado”. Mas o poder púbico sempre teve em mãos essa competência, na forma da lei. E não a exerceu. Ainda que não tenha havido dolo na incúria, o fato é que ela se fez presente. E 231 pessoas morreram.
Por Reinaldo Azevedo

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