quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Reféns da seca XX EXTRATOS DO BLOG DE MAGNO MARTINS

Reféns da seca XX ( final )


Deus deu aos homens a terra firme, as lagoas e os mares mansos. Mas o Sertão de vidas secas, esse ele deu ao perigo, o perigo da morte severina, que quando não se dá pela fome, se dá pela sede ou por uma emboscada. O homem manso do mar quando entra na caatinga fica feito olho de boi, parado, e quando vê fica assustado.
Sertão é perigo. É olhar no seu infinito um céu cinza e só enxergar reses magras, com grandes ossos agudos furando o couro das ancas. O sol, que maltrata homens, mulheres, crianças e os animais, é terrível. Não sei como não cega a sua gente, que tem olhos tristes, de desesperança. Não cega porque o sertanejo é antes de tudo um forte na visão euclidiana.
Na visão de Raquel de Queiroz, o sol do Sertão descasca só do mormaço. Ali, branco fica corado; preto, cinzento. Verde, na monotonia cinzenta da paisagem, só algum juazeiro quando escapa da devastação imposta por um sol que reflete uma luz que é quase como fogo. Pé de jurema serve de encosto. Quem come carne tem que roer até os ossos.
Ao mergulhar fundo nos sertões não há quem não se lembre da narrativa dolorosa de Raquel de Queiroz no livro 'O Quinze', desfilando seus personagens, como a Mãe Nácia, o João Marreca, Conceição, Vicente ou o vaqueiro Chico Bento fugindo da seca no sertão cearense do seu Quixadá.
Foi esta, igualmente, a sensação que tive ao rasgar 5,4 mil km de estradas em 15 dias nas áreas atingidas pela mais longa seca dos últimos 50 anos no Nordeste, que deixou 148 dos 185 municípios pernambucanos em estado de emergência, a maioria em profundo colapso no sistema de abastecimento de água.
'Seu' Antônio Piancó do Nascimento, da emblemática Serrita do vaqueiro Raimundo Jacó, o Chico Bento reencarnado e decantado na voz de Luiz Gonzaga, é o primeiro personagem deste último capítulo de Reféns da seca, que fui copilando ao longo dos últimos 20 dias, um a um, como Raquel em seu romance.
De forma desesperadora, ele tenta, com a força que Deus lhe deu, salvar mais uma novilha que não resiste e cai no pátio da sua fazenda tremendo de fome. Perder o gado virou uma rotina angustiante no chão euclidiano. Piancó teve que se desfazer de quase todo o seu plantel. E teve notícias de que em Dormentes, na semana passada, um criador, desesperado, cometeu suicídio.
Em Custódia, também correu a versão de que um pequeno criador levou dez animais para vender na feira e, mesmo oferecendo a preço de banana, não conseguiu arranjar um só freguês. Abatido, estressado e deprimido, teria igualmente tirado a sua própria vida com um tiro no coração.

Enquanto os pecuaristas entram na fase mais cruel do desespero, José Apolinário dos Santos Silva, de 17 anos, usa um jumento, que parece menor do que ele, para tanger a última novilha que resta do patrão que já foi próspero criador de gado no Sertão do Araripe, na bacia leiteira de Bodocó, que teve sua produção reduzida em 80%.
'Tenho andado por essa caatinga afora a procura de mandacaru', diz Apolinário, referindo-se ao único pasto que restou para o gado na sua região. É no lombo do jumento que ele carrega o que encontra pela frente nos pés do arbusto que ainda resistem ao sol forte e ao calor de mais de 40 graus. No entardecer do dia, quando a noite vai chegando mansinha, ele acende o fogo e queima os espinhos do mandacaru para dar como ração ao gado faminto.

No Brasil de terra em que se plantando tudo dá, nem o juazeiro vai escapando no Sertão. E gente de alma e espírito mansos, como dona Josefina de Assunção Pereira, 39 anos, vai levando a vida de caridade. 'Hoje, estou esmolando, porque não encontro mais nenhum bico, meu senhor', revela.
Josefina vive da caridade dos outros numa invasão do MST nas vizinhanças no Bebedouro, em Santa Maria da Boa Vista, de onde 2,5 mil famílias tiram o seu sustento com frutas irrigadas num projeto público compartilhado. No barro, ela e a família – oito filhos nas costas – sobrevivem famintamente.
No seu barraco, quando alguém se dispõe a fazer uma caridade com comida, ela e a ninhada de filhos devoram tudo e limpam os beiços nos molambos do braço. Josefina é como um boi: vive num curral de fome. 'Ainda não botei um bocado na boca hoje', diz, sem esconder a sua triste realidade.

Distante dali, no torrão de Rajadas, já nas encostas do Piauí, José Amaro Gonçalves, 41 anos, mata as horas que Deus lhe dá no dia sonhando com a volta das chuvas, porque já não aguenta mais tanto sofrimento. Perdeu tudo, do plantio de milho e feijão a duas vaquinhas leiteiras, que morreram de fome.
Como a esperança continua sendo uma chama acesa no Sertão, mesmo dia após dia o sol despontar mais agoniante do que antes, Amaro prepara a terra queimando as últimas ramas do juazeiro com fogo ardente. 'A gente aqui tem rezado muito, feito novena e até promessa, mas a chuva não vem não, moço', diz ele.
Se as previsões meteorológicas estiverem certas, como profetizam técnicos que espalham o terror pelo Sertão, chuva boa mesmo, para valer, de encher os açudes e despertar o canto do sabiá, só em março. 'Tenho fé em São José que ainda chove. Tem-se visto inverno começar em abril. Se isso ocorrer, a gente ainda escapa, mas o gado não. Morre tudinho', desabafa.
O sol em Conceição das Creoulas, um quilombo dos palmares implantado em Salgueiro, a 540 km do Recife, já elevou a temperatura a 49 graus. Lá, até os urubus desapareceram mesmo com um prato irresistível dando mole: os animais mortos jogados na beira da estrada. Ali, a água do cacimbão é compartilhada por homens e animais.

Gorete e Francisca, adolescentes quilombolas, já andaram do sítio até a escola em Conceição, percurso de 2 km, sem nenhuma proteção do sol escaldante. Mas depois que o sol virou fogo ardente elas se protegem com sombrinhas coloridas compradas pelos pais, beneficiários dos programas de distribuição de renda do Governo Federal.
Aliás, em Conceição das Creoulas, quase o distrito inteiro – 1,5 mil famílias – está sob o manto protetor do Bolsa Família. 'A gente vive da aposentadoria do meu pai e da bolsa que minha mãe recebe', diz Francisca, que se apegou aos estudos com planos para o futuro. 'Quero sair daqui e tentar a vida em outro canto sem muita desgraça', diz.

Presidente da Associação dos Quilombolas em Conceição das Creoulas, Andrelino Mendes, 60 anos, tentou um mandato na Câmara de Vereadores de Salgueiro nas últimas eleições para representar a raça negra no parlamento, mas não conseguiu. Teve apenas 325 votos e voltou à labuta na oficina de soldagem.
É lá que, entre um conserto e outro de equipamentos quebrados deixados pela vizinhança, vai arrumando uns trocados para complementar a renda da família. Como toda comunidade, é, também, beneficiário do programa Bolsa Família e não esconde de ninguém. 'O benefício está em nome da minha mulher', afirma.
Segundo Andrelino, não fosse a Bolsa Família ou a Bolsa Estiagem, esta criada pelo Governo estadual, ninguém estaria salvo no distrito. 'Aqui, a gente tira o sustento da terra, mas a seca levou tudo. Não temos mais nem a matéria-prima para o artesanato típico daqui, a base de sisal e fios de corda', desabafa.
O líder dos quilombolas é um homem sofrido, que administra um conflito social que parece eterno na sua comunidade, entre negros e índios da tribo Atikum. Quilombolas não se misturam com índios, que vivem a resmungar. Acham que são discriminados até na hora da solidariedade, quando aparece um coração bom por ali, levando cestas básicas.
'índio aqui não tem direito a nada, nem a cesta que o Governo manda', reclama Avanir, da tribo Atikum. Mas Andrelino tem lá seus argumentos. Segundo ele, as cestas básicas enviadas pelo Governo ou instituições de caridade só chegam até Salgueiro. 'De lá para cá, há uma despesa e só tem direito a cesta quem rateia esses custos', explicou.

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