domingo, 18 de novembro de 2012

EXTRATOS DO BLOG DE MAGNO MARTINS....Reféns da seca XII

Reféns da seca XII


“E se somos Severinos, iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença, é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida)”. 


Os versos de João Cabral de Melo retratam fielmente o drama da gente que tenta escapar da morte que se morre de velhice antes dos trinta, como ele diz, no mundo daqueles que tentam escapar de uma seca que não estava nos seus planos em Escada, Zona da Mata pernambucana.


E não uma seca passageira, mas a maior dos últimos 50 anos. Na casinha paupérrima de dona Conceição Batista da Silva, 44 anos, encrostada num pé de serra de um relevo acidentado, o Natal não é lembrado com árvores suntuosas nem um Papai Noel moderno e charmoso dos Alpes, mas apenas com a frase “Feliz Natal”, pintada pelo filho José, sétimo herdeiro de uma prole de 10.


Conceição, José, Pedro, Antônio, Maria, os nomes da filharada se confundem com fome e desgraça. “Esse ano tá tão ruim que não aparece ninguém por aqui para fazer uma caridade”, reclama a matriarca da sina traçada por Cabral de Melo Neto. Nos bolsões de miséria nordestinos, não há fiscalização em cima de trabalho infantil.



Filho da seca, deserdado do mundo, José Maria Assunção, o Zezinho, de 10 anos, aprendeu cedo o trato com a faca na raspagem da mandioca em Lagoa de Itaenga, na Mata Norte, município canavieiro que abriga o maior número de fabriqueta artesanal de mandioca da região.


É a alternativa que resta a muita gente que foge do corte de cana, trabalho associado à escravidão branca nos engenhos. “Meu pai me traz aqui para ajudar ele a entregar ao patrão 50 quilos de mandioca raspada por dia”, diz Zezinho, sem desgrudar os olhos da faca que segura com a mão direita.




Longe dali, num canavial aberto sem horizontes, queimado pelo fogo, Raimundo José, 31 anos, descansa sentado do serviço duro e puxado, que começou cinco da manhã. Reflexivo, ele ainda sonha em deixar aquelas terras de gente severina em busca de uma vida melhor em São Paulo, onde já se encontram três irmãos.


“Não tenho notícia dos meus irmãos há mais de dois anos, mas se eles não voltaram é porque encontraram coisa melhor para fazer do que cortar cana e arrancar mato aqui. Isso é trabalho de bicho e não de gente”, reclama. Raimundo ganha R$ 300 por empreitada nos engenhos de Primavera no corte de cana em engenhos.


Está cansado, abatido e angustiado. É o tédio da fadiga, como diria Raquel de Queiroz em O Quinze, onde desfilam personagens e retirantes das terras euclidianas, mais inóspitas do que a terra de fogo de Raimundo, que ainda dá a cana, muitas vezes banana e mandioca, quando bate à porta a entressafra da moagem.


A extensão da maior seca dos últimos 50 anos é claramente observada no engenho Mundo Novo, onde José Antônio de Assis Silva, 40 anos, perdeu a lavoura de subsistência que planta todos os anos em seu quintal, para garantir o reforço alimentar dos seis filhos que se abrigam numa casa de massapé.

O cenário ali não é diferente dos roçados do Sertão e Agreste, devastados pela longa estiagem. Zé Antônio conseguiu vaga numa usina próxima da sua casa para trabalhar no corte de cana.
A mulher, em casa, cuida da filharada e aproveita as horas de folga para arrumar uns trocadinhos lavando roupa pra gente mais abastada que vive na cidade.
“Aqui ainda tem água num cacimbão. É lá que me debruço em cima das trouxas de roupa”, conta.


Aposentado, com a mulher bolsista de um dos programas sociais do Governo, “seu” Genivaldo Albuquerque Silva, leva uma vida bem melhor, mas igualmente difícil.
“Não tenho mais força nos braços para trabalhar na roça, vou levando a vida como Deus quer”, diz, encontrado na sombra de uma árvore na estrada de acesso ao município de Catende.
“Já dei duro na vida, mas se aparecesse uma coisinha mais leve até que eu topava”, acrescenta. O velho diz que nunca viu uma seca chegar à sua região com tamanha intensidade.

“Eu estava acostumado a ver a seca fazer estragos lá pelo sertão e pela televisão, porque nunca sai daqui não. Sempre ganhei a vida pelos engenhos”, observa.


Cortar cana humilha até na hora de receber o dinheiro do resultado de tanto esforço desumano no campo. Geraldo de Aprígio, 28 anos, revela que os patrões são energéticos e ágeis na hora de recrutar a turma para o campo, mas lentos e insensíveis na hora de meter a mão no bolso.

Geraldo chega cedo à usina Estreliana e aguarda, pacientemente, o pagamento da quinzena na sombra de uma árvore frondosa. “Essa humilhação se repete todas as vezes que a gente vem aqui buscar o dinheiro do pão. Já não aguento mais. Eles (os patrões) parecem que não têm alma nem sentimento”, desabafa.
Na sua justa reclamação, como consolo bem que Geraldo poderia declamar Morte e Vida Severina, emblemática para a vida que leva em meio a tantos Severinos condenados à morte:
 “Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida: na mesma cabeça grande, que a custo é que se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas e iguais, também porque o sangue que usamos tem pouca tinta”. 
 Escrito por Magno Martins, às 09h31

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