sexta-feira, 16 de novembro de 2012

EXTRATOS DO BLOG DE MAGNO MARTINS.....Reféns da seca X

Reféns da seca X

A casa grande, a senzala e os engenhos da Zona da Mata pernambucana, que inspiraram Gilberto Freyre a escrever a sua obra prima, na qual disseca o controle que o patriarca detém sobre os escravos que se abrigam na propriedade agrária, hoje se confundem mais com o cenário de chão de terra batida euclidiano.
A profecia de que o sertão iria virar mar, atribuída a Antônio Conselheiro, não se cumpriu, mas Gilberto Freyre nunca imaginou que um dia a paisagem da sua senzala se convertesse numa caatinga.
É esta a sensação que dá a quem cruza hoje os imensos canaviais da Mata Norte do Estado. A casa grande virou, em alguns casos, gaiolas de uma escravidão diferenciada, improvisadas na beira da estrada por uma gente que pena com a maior seca dos últimos 50 anos.
Enxotada em seu barraco resultado de uma invasão do MST em Ferreiros, a dois km da usina Olho d´água, símbolo do colonialismo retratado na pena gilbertiana, dona Maria de Lourdes Esmeridiano, 38 anos, vive de biscates, sem bolsa família, sem água, sem luz, como bicho no meio do mato.
“Ninguém arranja nada pra gente aqui, não. A gente vive largada do mundo”, diz ela, atestando que os rastros da seca chegaram por ali. Água de beber ou para os afazeres domésticos nos seis barracos que abrigam 32 pessoas, entre homens, mulheres e crianças, só buscando num chafariz público.
Maria não serve mais nem para cortar cana nos engenhos que se abrem num horizonte de se perder de vista, nos quais Josivaldo Tiago dos Santos, 24 anos, diz que aceitou uma empreitada da usina Petribu para matar o tempo. Com muito esforço, debaixo de um sol abrasador, mete o facão numa cana que virou nanica por falta de água, perdendo consistência também no seu teor de açúcar.

Nascido e criado em Aliança, Josivaldo passa o dia cortando cana em Lagoa de Itaenga para ganhar R$ 40 por tonelada do produto. “Eu vivia do agrotóxico, que também não era uma vida fácil”, diz, retratando o emprego anterior, de se embrenhar pelas fazendas do Agreste, ali próximo, para proteger a lavoura de pragas.
Tanto um quanto outro se encaixa no relevo de escravidão da Casa Grande & Senzala. Para escapar da seca que levou a Zona da Mata a perder 40% da cana que sai dos engenhos numa safra de seis meses, direto para a moagem nas usinas, João Severino dos Anjos, 62 anos, convocou a mulher, filhos e agregados para raspar mandioca numa fabriqueta artesanal na cidade de Lagoa de Itaenga.

O flagrante da família inteira sentada de mau jeito, com faca na mão, correndo risco de cortar um dedo pela rapidez na descasca, nos remete também à escravidão da senzala gilbertiana. Cada um da família tem que alcançar a meta de entregar ao patrão 10 quilos de mandioca raspada por dia, para tirar no final de semana R$ 30.
“Eu não sei o que é pior: cortar cana ou mandioca”, diz João, reclamando das dores nas mãos. “De noite, quando chego em casa minhas mãos parecem adormecidas. Reclama eu, minha mulher e os filhos, mas se a gente não se submeter a isso terá que voltar para o canavial, que é pior por causa do sol”, diz.

Os personagens de Morte e vida Severina também aparecem estampados no solo de uma região que num passado distante já projetou Pernambuco como um dos maiores produtores de açúcar do País. Açúcar que adoçou a vida de tantos brasileiros do sul-maravilha e até de gente em outros continentes.
“Aqui, a cana não presta mais nem pra gente chupar e enganar a barriga”, reclama Severino José da Costa, 68 anos. Natural de Vicência, município próximo a Ferreiros, onde vive na mesma invasão de Maria de Lourdes, ele conta que está desempregado há mais de 10 anos. “Estou velho para cortar cana”, admite.
Sem resistências para o trabalho braçal, “seu” Severino diz que vive, hoje, de catar lixo. Sozinho na vida – “a mulher me largou” – bate no peito e diz que tem um coração grande. “Nunca fiz um filho, mas tenho 30 filhos”, dispara, numa alusão aos companheiros de invasão, que, segundo ele, sofrem da mesma dor, como filhos da mesma dor.

Jaime Severino da Silva, 43 anos, é um milagreiro. Consegue sobreviver da venda de batata doce pelas ruas de Lagoa de Itaenga. O produto que exibe à clientela pelas ruas da cidade, levando numa carroça, está escasso nos roçados da região devido à seca. “Tem dia, moço, que não apuro nada, não dá nem para comprar o café”, reclama.
Quando muito, Jaime embolsa R$ 25, apurado do dia de ontem, um feriado nacional, porque a batata estava de melhor qualidade, produzida e retirada de uma fazenda em Limoeiro, já no Agreste. “Eu não tenho saúde e por isso não sou mais aceito nas empreitadas do corte da cana. Assim, o jeito é me virar com minhas batatinhas”, diz.
Na conflagrada Zona da Mata, que perdeu o seu charme e hoje assiste ao declínio do setor sucroalcooleiro do Estado, ninguém vive sem sacrifício. Se cortar cana é sinônimo de escravidão branca, entregar o produto nas usinas virou negócio para quem tem paciência de Jó.

Em frente à usina Olho d´água, na cidade de Ferreiros, o motorista George Souza, procedente de Aliança com uma carreta empilhada de cana, esperava, pacientemente, a hora de entregar o produto numa fila enorme. “Já tem mais de sete horas que estou aqui, mas a fila não anda”, disse.
George ganha salário mínimo e reconhece que, diferente da safra anterior, a deste ano caiu muito. “Eu chegava a entregar três caminhões por dia na safra passada, agora só entrego um e olhe lá”, observa.
Em Casa Grande & Senzala, Gilberto Freyre retrata que muitos escravos se suicidaram comendo terra, enforcando-se, envenenando-se com ervas e plotagens dos mandingueiros.
“O banzo deu cabo de muitos. O banzo - a saudade da África. Houve os que de tão banzeiros ficaram lesos, idiotas. Não morreram, mas ficaram penando”, retrata numa das passagens do livro.
A obra mais estudada, debatida, geradora das mais diversas interpretações no mundo, é de 1933. De lá para cá, o mundo mudou e se modernizou, mas a escravidão branca é a mesma, agora muito mais cruel pelo flagelo de um fenômeno que, antes, era exclusividade dos sertões de Guimarães Rosa, de Euclides da Cunha e Raquel de Queiroz.

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